Companheiros/as
do SUAS,
Retransmitimos
análise da professora Jucimeri Silveira, pesquisadora da PUC-PR e gestora do SUAS, sobre a atual conjuntura que
atinge diretamente o Sistema Único de Assistência Social.
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Por Jucimeri Silveira*
As primeiras iniciativas do Ministério de
Desenvolvimento Social e Agrário do governo interino de Michel Temer demonstram
reais tendências de desmonte do Sistema Único de Assistência Social, num
cenário de redução de direitos, de investida neoliberal e de avanço de uma
agenda conservadora na política, em detrimento das conquistas democráticas. Os
discursos de manutenção do que se conquistou de forma deliberativa e
republicana nos últimos 10 anos na Assistência Social, não encontram coerência
com a prática de gestão e as propostas, algumas já anunciadas ou implantadas
por Decreto, com destaque para:
- Anúncio de recursos
financeiros relativos ao exercício de 2016 garantidos apenas até setembro, com orientação de
articulação de emendas parlamentares como saída possível. A descontinuidade dos recursos fere a lógica do SUAS quanto
aos repasses obrigatórios, regulares e automáticos fundo a fundo, para a
manutenção e expansão de serviços continuados. Os bloqueios baseados
apenas nos saldos em conta trazem absoluta insegurança aos municípios e
prejuízos no planejamento e na manutenção da rede estatal em todo o
Brasil. Coloca-se em risco o funcionamento das mais de 10 mil unidades
públicas de referência e especializadas que atendem a população mais
vulnerável e com direitos violados em todo o Brasil;
- Implantação de Visitadores Sociais vinculados ao
programa “Criança Feliz”, voltado à primeira infância. O programa de
governo desconsidera a rede de serviços implantada, o pacto federativo e a
descentralização, a possibilidade de cofinancimento de serviços
tipificados, como a Proteção Social Básica no Domicílio, e o
acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. A
contratação precarizada de 80 mil visitadores reforça a tendência de
desmonte da gestão do trabalho, com evidente desqualificação do trabalho
especializado na assistência social. Com isso, surgem, com novas
roupagens, práticas da chamada medicina social, o que nos faz relembrar a
implantação em 1920 da primeira Escola de Serviço Social para atendimento
materno infantil, as primeiras iniciativas na década de 1930 no Brasil
para controle materno infantil e dos pobres. A situação de maior pobreza
na infância e juventude evidentemente requer atuação integrada das
políticas públicas. Entretanto, devem compor a rede de serviços do
conjunto de políticas sociais. A Assistência Social não pode reassumir
funções de outras políticas públicas. Os municípios não podem sofrer com a
sobreposição, a residualidade e sobreposição de ações;
- Rearticulação das ações solidárias
em nível central desconsiderando a municipalização da política, especialmente
no papel do município compor e cofinanciar direta e indiretamente a rede
socioassistencial não governamental, com evidente tendência de retomada da
primazia da atuação solidária da sociedade civil, em detrimento da
manutenção e expansão qualificada da rede estatal. A atuação do terceiro
setor é complementar e regulada no Vínculo SUAS, e, deste modo, não pode
ser a “saída salvadora” para os contingenciamentos de recursos, ou servir
de argumento para a organização das chamadas “portas de saída” do Programa
Bolsa Família. O Programa Comunidade Solidária do governo Fernando
Henrique demonstrou sua incapacidade em substitui os impactos dos sistemas
estatais, orientados pelo princípio da universalidade, como o caso do
SUAS, bem como da primazia estatal;
- Cristalização da agenda de
pactuação de
recursos e ações nas instâncias do SUAS. Sob os argumentos de
insuficiência de recursos ou redirecionamento da gestão para uma
perspectiva de maiores resultados e estudo de cursos, o que se percebe é
um congelamento na agenda de pactuação de serviços para todo o Brasil. O
Plano Decenal comanda a plena universalização da proteção social na
assistência social (benefícios e serviços), com cobertura progressiva para
as desproteções, devendo compor um conjunto de iniciativas que
possibilitem a redução da desigualdade, das vulnerabilidades e assimetrias
de poder;
- Rearticulação das Comunidades Terapêuticas e
de políticas proibicionistas, segregadoras e
higienistas, para o atendimento da população em uso de
álcool e outras drogas. As perspectivas são de retrocessos na agenda integrada
entre políticas públicas para a oferta de serviços de atenção e proteção,
redutores de danos, com possibilidades maiores de interrupção da condição
de rua ou outras situações associadas. A culpabilização dos indivíduos
sociais por sua condição encontra total coincidência com a cultura
conservadora que moraliza e criminaliza os pobres;
- “Focalismo” extremo nos mais
pobres e redução do acesso à Segurança de Renda. As medidas anunciadas
quanto aos controles “mais rígidos”, (sugerindo fraudes passadas) no
acesso aos benefícios socioassistenciais (Programa Bolsa Família e
Benefício de Prestação Continuada), demonstra a evidente tendência de
progressiva redução de acessos, baseada na opção neoliberal por restringir
políticas distributivas quanto à abrangência, permanência e escala. Maior
focalização nos 5% mais pobres em relação ao Programa Bolsa Família ou
adoção de critérios como maior grau de dependência, no caso de pessoa
idosa e pessoa com deficiência, pode indicar no mínimo um “filtro” maior
no acesso a um direito Constitucional. A subordinação da política social à
política econômica, desconsiderando inclusive o papel de desenvolvimento
das economias locais, coloca em risco a manutenção do vínculo do BPC ao
salário mínimo, e a universalização de políticas distributivas, sendo que
estas têm efeitos diretos na redução da desigualdade de renda. Expressa,
ainda, uma total desconsideração do papel das políticas distributivas no
desenvolvimento humano, que evoluiu positivamente 47,8% nos últimos 20
anos, com expressiva redução na última década da pobreza, da fome, da
mortalidade infantil, entre outras dimensões que posicionaram o Brasil
como referência mundial nas políticas sociais;
§ Redução do papel das instâncias
deliberativas. A
implantação de medidas que não passaram por pactuação e deliberação ferem o
pacto federativo construído no SUAS, e expressa um descumprimento da Lei
Orgânica de Assistência Social e da própria Constituição Federal de 1988, que
define novos dispositivos democráticos. Políticas de Estado respeitam o comando
Constitucional da participação, implicam processos deliberativos e
interfederativos, o que requer o recurso permanente do diálogo, da produção de
consensos disputados nas arenas políticas na via institucional. Negar o
processo democrático construído no SUAS combina com a cultura política
conservadora, num cenário de golpe à democracia, já que anula o conflito como
atributo da democracia, e impõe uma agenda de retrocessos no campo dos direitos
humanos e das políticas públicas.
O cenário político desafia os/as defensores/as de
direitos humanos, e, particularmente da assistência social, a uma atuação
vigilante, tanto nos espaços institucionalizados de participação, quanto, e,
sobretudo, nos espaços políticos de resistência e luta coletiva em defesa da
democracia e dos direitos.
A atual conjuntura revela uma tendência que
extrapola os retrocessos na assistência social. Coloca-se em prática nas
diversas políticas públicas e sistemas específicos em direitos humanos, uma
agenda regressiva, com evidente avanço do conservadorismo. Pautas como a
redução da maioridade penal, são alimentadas por propostas que reforçam a face
do Estado “gerente” para o mercado e “penal” para os mais pobres e os
movimentos sociais.
Além da subordinação da política social ao ajuste
fiscal, outras medidas neoliberais afetam os/as trabalhadores/as, como a
reforma na previdência social, a mercantilização da saúde, com o desmonte do
Sistema Único de Saúde, a precarização do sistema público de ensino e o
programa “Escola Sem Partido”, entre outras. As reformas planejadas afetam a
soberania brasileira e as conquistas parciais em direitos humanos, e já
sinalizam a volta da pobreza, o aumento da violência e o aprofundamento da
desigualdade, em todas as suas dimensões (racial, de gênero, socioeconômica)
É preciso reafirmar os direitos e as conquistas de
nossa democracia recente, entre eles o direito à assistência social num projeto
popular de defesa das reformas estruturantes. A conjuntura exige resistência,
mobilização e luta coletiva, o que requer uma estreita aliança entre
trabalhadores/as sociais e usuários/as dos serviços, com fortalecimento dos
movimentos e organizações em defesa dos direitos e da democracia!
* Jucimeri Silveira
Assistente Social, pesquisadora e
professora da PUCPR.
Fonte: https://maissuas.org/2016/07/22/suas-em-risco-tendencias-de-uma-agenda-neoconservadora/